NOTAS AO REDOR DE “VETE DE MÍ”
de Amálio Pinheiro
Este texto foi apresentado na JORNADA INTERNACIONAL AMÉRICA LATINA: CONCEITOS E EXPERIÊNCIAS, em março de 2013, no Memorial da América Latina.
Tu,
que llenas todo de alegría y juventud,
y ves fantasmas en las noches de trasluz
y oyes el canto perfumado del azul:
Vete de mí!
No te detengas a mirar las ramas viejas del rosal
que se marchitan sin dar flor;
mira el paisaje del amor
que es la razón para soñar y amar...
Yo,
Que ya he luchado contra toda la maldad,
tengo las manos tan desechas de apretar
que ni te puedo sujetar:
Vete de mí!
Seré en tu vida lo mejor de la neblina del ayer
cuando me llegues a olvidar;
cómo es mejor el verso aquel
que no podemos recordar.
ALGO SOBRE HOMERO
O fato de dois importantes nomes do tango (os irmãos Virgilio e Homero Expósito) comporem um bolero não poderia deixar de provocar
marcantes conseqüências poético-musicais: a letra muito bem elaborada favorece
a inclusão do clima sentimental dos arrabaldes portenhos nas variações vocais
dos intépretes do bolero em toda a América Latina e Península Ibérica. Ampliam-se
assim as mestiçagens cigano-árabes do âmbito andaluz com as afro-caribenhas (expandidas
ao México e toda a América luso-hispânica, aqui inclusas as traduções e
interpretações brasileiras) e aquelas do crisol formador do tango. Falando
deste último, Sábato (1999: 15) dá umas pistas: “Es baile híbrido de gente
híbrida: tiene algo de habanera traída por los marineros, restos de milonga y
luego mucho de música italiana. Todo entreverado, como los músicos que lo
inventan: criollos como Ponzio y gringos como Zambonini”. Salas (1999: 311-312) resume a contribuição de
Homero à história do tango, presente também em “Vete de mí”:
Si Cátulo Castillo fue el autor de
la nostalgia, Homero Expósito es el
cronista del presente.
Inclinado hacia la metáfora desde sus primeras
composiciones, recibió
algunas andanadas de quienes se aferraban al
viejo estilo directo de
las antiguas letras (...) Pero debieron acostumbrarse.
La formación
universitaria de Expósito lo había puesto en contacto con
las vanguardias
poéticas y no quería desaprovechar la posibilidad de
enriquecer sus versos
mediante metáforas de cuño estrictamente literario
(...) además agrega a
su obra um manejo de las rimas internas para
enfatizar la intención
de la frase, sólo utilizadas en igual sentido por Cátulo
Castillo.
Este excesso dos cruzamentos e dobraduras entre rimas
internas de todos os tipos e aquelas dos finais de verso, que acelera a
orquestração e as modulações do cantado, está presente, entre tantos outros
casos, por exemplo, conforme indica Salas (1999: 315), no famoso “Afiches” (com
música de Atilio Stampone):
Cruel en el cartel,
la propaganda manda
cruel en el cartel,
y en el fetiche de un
afiche de papel
se vende la ilusión,
se rifa el corazón...
É útil reparar aí, de passagem, num procedimento largamente usado
no “Vete de mí”: não apenas as rimas finais, mas a maioria das internas
coincidem com os acentos do verso, amplificando os ritmos e compactando os
metros e as estrofes. Cada cantor se aproveitará mais ou melhor de tais
expedientes de poema.
Sierra (1992) situa Homero Expósito entre duas tendências (reativadas
no nosso bolero) dessa poética do tango
Y por
esa búsqueda de una versificación más literariamente depurada,
transitaron
consagratoriamente José González Castillo, Enrique Cadícamo,
Francisco García
Jiménez, Héctor Pedro Bloomberg, Cátulo Castillo,
Homero Manzi y José María Contursi. Y ese proceso de
superación
poética del tango, a
nuestro juicio culmina con Homero Expósito. El más
original, el más
importante y el más representativo de los poetas del tango,
a partir de la
brillante generación del cuarenta. Y para siempre.
Orientó Homero Expósito
su inventiva literária consagrada a la canción
popular en la
confluencia de dos actitudes poéticas temperamentalmente
opuestas, pero
igualmente admirables: el romanticismo nostálgico y
evocativo de Homero
Manzi, y el grotesco dramatismo sarcástico de
Enrique Santos Discépolo. De tan
sutil combinación estilística y temática
sin propornérselo,
logró Expósito definir una novedosa y originalísima
modalidad de
interpretación para la letra del tango.
O POEMA A SER CANTADO
“Vete de mí” desdobra fortes paralelismos entre a primeira e
terceira estrofes e entre a segunda e a quarta. Isso torna ainda mais intensas e
operativas as irregularidades, jamais gratuitas; o dessemelhante reage no
semelhante, engastando os fatores rítmicos do verso (Tinianov, 1975) nos da
canção. Na terceira estrofe, o terceiro verso (“que ni te puedo sujetar:”) é
octossilábico, enquanto na primeira (“y oyes el canto perfumado del azul:”) segue
a trilha crescente de alexandrinos completos, com acentos na quarta, oitava e
décima segunda sílabas. Na quarta e última estrofe, o quarto e último verso (“que
no podemos recordar.”) prolonga a fieira de octossílabos dominantes, enquanto
na segunda, ao fim da metade do poema-bolero, se derrama num decassílabo
perfeito, com acentos na quarta, oitava e décima sílabas, para escandir uma
frase melodramática de plantão (”o romantismo nostálgico e evocativo” acima
mencionado), quase parecendo ser trazida de um pregão popular (que carrega
sempre a força de um estribilho coletivo) : “que es la razón para soñar y
amar...” Ressalte-se que os acentos na quarta sílaba, predominantes tanto
dentro dos octossílabos, decassílabos e alexandrinos, em leque, como no verso
“Vete de mí”, que finaliza a primeira e terceira estrofes, num crescendo vocálico
fulgurante até o cume da última sílaba tônica oxítona, funcionam com uma espécie de célula rítmica
básica de todo o poema-bolero. Certos intérpretes, como Bola de Nieve, acentuam
especialmente essa marchetaria melismática extensiva. Mas esse encaixe de
vozerio corriqueiro de bairro na memória do metro clássico lhe confere especial
valor e merece uma pequena digressão.
PARÊNTESE NECESSÁRIO
A farta inclusão de material externo, anônimo e coletivo,
como pregões e estribilhos, é muito importante para a compreensão de inúmeros
poetas da América Latina, que inserem os movimentos e as séries urbanas nos
ritmos e na composição dos poemas. Ángel Augier (1983: 39) examina o procedimento,
por exemplo, no chamado “poema-son” de Nicolás Guillén, em que a complexidade
da versificação traz embutida, como em arabesco, a fala cotidiana dos amores e
das ruas:
Las estrofas – de nueve y diez versos
alternativamente – combinan octosílabos
con quebrados de distintas
medidas, algunos de éstos constituidos por
expresiones típicas del son
popular: “mi flor”, “caramba”, “mi bien”,
intercalados como contraste
entre versos que aúnan belleza formal y la fuerza
de la justa cólera que inspira
“saber que el verdugo existe”.
Muito importante será sempre a sabedoria
sintático-metonímica do poeta para, a partir da malha de linguagens da cultura
(danças populares, o bongô, pregões,
estribilhos, recortes coloquiais, fonemas negróides, verso clássico, barroco
ibérico) reinventar a multiplicidade de variantes num poema, o “poema-son”. A
periferia já estava no centro. Chamar, meramente, a essa acomodação sísmica de
alteridades divergente-inclusivas, pelo epíteto evolutivo-epocal “moderno”, em
oposição ao mais ou menos “pré-moderno” ou mais atrasado, significa submeter os
acontecimentos do continente a uma lógica iluminista.
Cabe sob medida aqui, quanto à tendência de inseminar as
vozes coloquiais e marginais no poema, o destaque de Lezama Lima, no seu
“Nacimiento de la expresión criolla” (1988: 265-266), ao que denomina “poeta
malo necesario” ou “poeta malo imprescindible”:
Pero hay el poeta malo de buen dejo, que
viene en la descendencia de la
juglaría, cuando la poesía
hizo su refino florentino, su acopio de fábulas
galantes, que tiene su
alegría en su cohete burlador, cuya raíz está en una
zona donde no corre la
literatura, pero que hace de la poesía una moneda de
relieve apagado, pero de
sanguínea flor de feria. Es la poesía que prescinde de
la literatura, pero que se
suelta como un amuleto alegre. Convence
prontamente que da un toque
acompasado que la vida necesita. Se extiende en
la hoja del cuchillo, rodeado
de guirnaldetas y com letras voladas dice: “Soy
tu amor”. En el pregón de los
dulceros viejos: “Alcorza, alcorza, / el que
no come no goza”. En los estribillos de los
negros en su Día de Reyes:
“Petrona e mi peso, / si tú no
me lo dás / te arranco e pescuezo”. En los
carritos madrugadores, que llevan como si
fuera un tatuaje: “Sigo el destino;
yo voy
y vengo, a nadie envidia le tengo” (...) Nacieron para quedarse, pues
tienen
del mineral, de la costumbre y del milagro. Tienen algo del silencioso
redoble de la muerte en el día en que nos
morimos. Pero mientras tanto nos
miran
con ojos saltones y nos demandan.
Combinam-se, no nosso tango-bolero, a tradição concentrada dos
poetas do tango e a exposição descentrada das tradições em trânsito nas margens
e subúrbios. Não por acaso Jerusa Ferreira o inclui, de modo marcante, na sua
“Cultura das Bordas” (2010: 17):
Em 2006, reencontro “Vete de mí”, um bolero
composto pelos famosos irmãos
Virgilio e Homero Expósito,
filhos de anarquista migrante catalão e
pertencentes ao universo
tangueiro, de Buenos Aires, inseridos numa espécie de
outra tradição cultural do
Continente. Ora, aí estão as imagens do arrabalde e
da boêmia portenha, de uma
boêmia sem limites certos, no que se refere à
classe social.
O POEMA A SER CANTADO
Os pronomes “Tu” e “Yo”, constitutivos do diálogo
lírico-dramático, merecem um verso próprio: a boca se enche de um silêncio
ativo depois de pronunciá-los, tensão que prepara a série, de perder o fôlego,
dos três alexandrinos da primeira estrofe, e dos dois alexandrinos, mais um
octossílabo, na terceira. Quando tratamos a canção como poema escrito, não há
verso, nem rima em fim de verso, nem contagem métrica, nem estrofe, sem a
presença do rumoroso silêncio em branco da página. Todo tradutor ou intérprete-cantor
deve aí perceber o óbvio: que a forma é significante. A condição temporal do
canto não pode deixar de ser marcada no espaço em branco da página do poema,
que represa e imanta o sentido, em aceleração barroquizante, do que virá dito
nos mencionados dodecassílabos seguintes e resplenderá melodramaticamente,
depois de novo silêncio ativo, no arranque do quadrissílabo que decide a
estrofe. O canto pode exponenciar o verso: não é por acaso que, por exemplo,
Bebo & Cigala, ao modo flamenco, Dalva de Oliveira, ao modo de samba-canção
(ou sambolero?) e o próprio autor da música, Virgilio Expósito, quando a cantam,
realçam o pico desse “mí” lancinante. Visualizemos outra vez o formato da
primeira e terceira estrofes.
Tu,
que llenas todo de
alegría y juventud,
y ves fantasmas en la
noche de trasluz
y oyes el canto
perfumado del azul:
Vete de mí!
Yo,
que ya he luchado
contra toda la maldad,
tengo las manos tan
desechas de apretar
que ni te puedo
sujetar:
Vete de mí!
ALGO DA MARCHETARIA
As inflexões entre tangobolero e bolerotango dilatam o mapa
de interações em duas direções concomitantes, que se enxertam, em arabesco, uma
na outra. As mútuas inclusões entre o repertório melodramático dos lupanares e
arrabaldes e as inovações poéticas (lexicais, gráficas, sonoras, visuais etc)
dos anos 40 se tecem ao movimento ampliativo das estruturas formais, desde o
primeiro verso da primeira estrofe ao último da última, passando, progressivo-regressivamente,
por todas essas oxítonas intensamente agudas e extensamente prolongáveis, no
ápice dos versos, numa espécie de acupuntura barroca. Desse modo, aquilo que
pertence ao ambiente da cultura (séries coloquiais, oralidades cotidianas,
frases feitas, provérbios, sensualidades de bairro...) entra (se encadeia) nos
fatores rítmico-construtivos (Tinianov, 1975) do verso (rimas, aliterações,
paronomásias, metrificação, orquestração...). E vice-versa, num conjunto móvel
interno/externo. Por isso, por exemplo, não se pode separar (ou deixar de
perceber) a relação, no verso dodecassílabo “que ya he luchado contra toda la
maldad”, na terceira estrofe, entre um sentimento de pessimismo ressentido
acumulado na memória dos bairros portenhos e as rimas toantes na segunda,
quarta e décima segunda sílabas. Outras relações se colocam, conforme cada
caso, em todos os demais versos.
Está aí dada uma enorme
tarefa de tradução. Esta deve dar conta de como, na América Latina, as
interações (corpocultura, internoexterno, palavracoisa) são anteriores aos
dualismos, a saber, anteriores ao estabelecimento de uma invariante de que as
infinitas variantes dependeriam. As traduções, contra a recuperação essencializante
das origens, são um roteiro diferenciante do que, múltiplo, varia a partir de
novas coordenadas espaciais e temporais, incluídas virtualmente no texto de
partida e reatualizadas a cada interpretação.
DALVA E LOURIVAL
Foge de
mim
versão: Lourival Faissal
Tu, que envolves tudo em alegria
juvenil
E vês na Lua mil figuras desiguais
E ouves canções emoldurando o céu de anil
Foge de mim!
Não te detenhas a olhar os ramos velhos do rosal
Que vão murchando sem dar flor,
Olha a paisagem do amor
Que é razão para sonhar e amar...
E vês na Lua mil figuras desiguais
E ouves canções emoldurando o céu de anil
Foge de mim!
Não te detenhas a olhar os ramos velhos do rosal
Que vão murchando sem dar flor,
Olha a paisagem do amor
Que é razão para sonhar e amar...
Eu, que lutei tanto contra a inveja e
maldição
Sinto essas mãos enfraquecidas a sangrar
Que já não podem te apertar
Foge de mim!
Serei o que houve de melhor
Doce lembrança em teu viver
Quando puderes me esquecer
Como o poema que é melhor
E não podemos recordar.
Sinto essas mãos enfraquecidas a sangrar
Que já não podem te apertar
Foge de mim!
Serei o que houve de melhor
Doce lembrança em teu viver
Quando puderes me esquecer
Como o poema que é melhor
E não podemos recordar.
Algumas invenções devem ser aqui
realçadas. Faissal substitui o clima sentimental escuro das oxítonas castelhanas
em “u” (“juventud”/”trasluz”/”azul”) pela brilho solar saltitante das rimas com
base na letra “i”: “juvenil”/ “desiguais”/ “céu de anil”. Se perde a rima toante
no segundo verso (“desiguais”), recupera-a esplendorosamente, aproveitando a
garganta de Dalva, no “Foge de mim!”. A tradução é uma arte da compensação,
tendo-se em vista os movimentos entre a língua e a cultura em cada situação de
espaço e tempo. O bandoneón é mais para vogais sombrias, a flauta para as
abertas (não por acaso, no tango, o bandoneón terminou por se impor sobre a
flauta).
“Foge de mim!” é um achado. Esse “ó”
aberto solar e escorregadio modula e glosa, em certa medida, a entrecortada e
cortante catadupa de vogais “e” fechadas em “Vete de mí!”. Ademais, parece ser
uma citação pertinente do nosso chorinho “Carinhoso” de Pixinguinha: “Meu
coração, / não sei por quê, / bate feliz, / quando te vê... (...) e os meus
olhos ficam sorrindo / e pelas ruas vão te seguindo, / mas mesmo assim / foges
de mim...”. Ao mesmo tempo, expressões populares tais como “não foge de mim” ou
“você está fugindo de mim” são uma espécie de frase feita funcionando como
estribilho coletivo das relações amorosas: por isso não interessa se Faissal
embutiu o verso de Pixinguinha voluntariamente ou não.
UMA POSSÍVEL TRADUÇÃO
SOME DE MIM
Versão: Amálio Pinheiro
Tu,
que sabes tudo de alegria e juventude
e ves fantasmas pelas noites contra a luz
e ouves o canto perfumado desse azul:
Some de mim!
Não te detenhas para olhar os velhos ramos do rosal
que vão murchando sem dar flor;
veja a paisagem desse amor,
nossa razão para sonhar e amar...
Eu,
que travei lutas cara a cara com a maldade,
trago meus braços tão cansados de apertar
que nem te posso segurar:
Some de mim!
Serei em tua vida como o sol solto na névoa do que foi
quando me venhas a esquecer;
pois o poema que é melhor
nós não podemos refazer.
REFERÊNCIAS
Sábato, Ernesto. “Tango. Canción de Buenos Aires”. In:
Horacio Salas. El tango. Buenos Aires: Planeta, 1999.
Salas, Horacio. “El tango”. Buenos Aires: Planeta, 1999.
Sierra, Luís Adolfo. “Homero Expósito”. “Tango y Lunfardo”,
nº 74, Chivilcoy, 12 de maio de 1992.
Tinianov, Iuri. “O problema da linguagem poética I. O ritmo
como elemento construtivo do verso”. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
Augier, Angel. “Los sones
de Nicolás Guillén”. In: Nicolás Guillén: el libro de los sones. Havana: Letras
Cubanas, 1993.
Lezama Lima, José. “Nacimiento de la expresión criolla”. In:
Confluencias. Havana: Letras Cubanas, 1988.
Ferreira, Jerusa Pires. “Cultura das bordas”. São Paulo:
Ateliê, 2010.
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