21 de jun. de 2010

O macaense verdadeiro não é português nem chinês. É mestiço. Era Adé quem ensinava

Macau Sã Assi
por Emerson Santiago
emerson@opatifundio.com
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O macaense verdadeiro não é português nem chinês. É mestiço. Era Adé quem ensinava


Unga Casa Macaísta - Literatura de Adé é resultado de misturas entre português, cantonês e chinês, o chamado dialéto macaísta
José dos Santos Ferreira, mais conhecido pelo seu prático e “fôlegoeconomizante” apelido “Adé”, era macaense. Antes de mais nada, para os mais desavisados, “macaense” ou “macaísta” aqui é o originário de Macau. Não, não aquela cidade no estado do Rio Grande do Norte, nordeste do Brasil. A Macau a qual me refiro é cidade chinesa.

Chinesa na origem, mas colônia portuguesa durante mais de 400 anos. Mao Ze Dong (Mao-Tsé-Tung), o líder comunista, teria dito que os portugueses foram os únicos a permanecer na China durante tanto tempo sem causar estardalhaço ou serem ameaçados por guerra. Ponto para os portugueses. Infelizmente, este parece ser um dos poucos pontos a favor da presença portuguesa na China. Vou explicando junto com a descrição da trajetória do nosso Adé, poeta, escritor, jornalista e mais uma dezena de coisas ligadas à cultura daquela região do oriente.

Afinal, por que é importante gastar espaço no Patifúndio! com um escritor macaense sendo que há tantos e tantos ilustres ourives das palavras no Brasil e em Portugal? Exatamente por essa mesma razão.

Enquanto as letras portuguesas e brasileiras monopolizavam (e até hoje monopolizam) o rumo da língua portuguesa, esses pequenos e humildes abnegados espalhados por cantos longínquos como Timor, São Tomé e Príncipe, Macau ou Goa, esperneavam-se para serem ouvidos, muitas vezes sem perspectiva de sucesso. Talvez o leitor acredite ao ler o trabalho de Adé internet afora (eu tenho dois livros dele, aliás, dificílimos de se encontrar), que realmente não se trate de um Fernando Pessoa do oriente. Realmente creio que não é o caso.

Ele se encaixa mais no que o brasileiro gosta de classificar como “regionalista”, apegado aos usos e costumes de seu meio, sendo uma porta aberta para um mundo o qual poucos conhecem. Eu o considero mais próximo a Cornélio Pires de São Paulo ou Leonardo Motta, do Ceará, dois escritores preocupados em retratar mundos esquecidos (no primeiro caso, o do caipira do interior de São Paulo e no outro, o sertanejo nordestino). O mundo de Adé é do mesmo modo esquecido ou ignorado. É o mundo do mestiço chinês-português. Um mundo riquíssimo, impossível de tratar em um simples artigo.

É aí que mora o grande pecado, ou se desejarem, mazela de Portugal no oriente. Ao invés de procurarem aprender, assimilar ou no mínimo entender esse riquíssimo caldo cultural que ia surgindo em Macau, fruto de duas culturas diametralmente opostas (o extremo oriente – China – e o extremo ocidente – Portugal – juntos numa única e peculiar oportunidade de contato e conhecimento), Portugal resolveu impor a sua cultura, tal como se estivéssemos falando de Trás-os-Montes ou Açores. Imaginem o quanto Portugal perdeu, a não se atrever a penetrar num mundo tão ou mais adiantado que o seu!

Resultado: Hoje, menos de cinco por cento dos cidadãos de Macau falam português; o dialeto macaísta, uma mistura exótica de português, cantonês e chinês que foi quase que erradicado pela obsessão em se fazer com que os locais falassem português castiço (hoje, tal língua é candidata à lista da Unesco de idiomas em perigo extremo de extinção, e pasmem, é mais falada em Hong Kong, que fica ao lado, do que em Macau).

Adé procura timidamente fazer essa ponte em seus trabalhos, todos escritos no tal português macaísta (a sua deliciosa versão, em dialeto, de “Uma Casa Portuguesa” deu a primorosa “Unga Casa Macaísta”).

Vale lembrar que a grande e esplendorosa Hong Kong, ali do lado, não possui nada disso. Nenhum dialeto ou crioulo inglês-chinês, nenhuma literatura mestiça ou local no nível que descrevo aqui, nem música, nem nada parecido.

Adé é o escritor e poeta do português de Macau. Ele o representa. Qualquer um que decide conhecer essa variante linguística do português passa pelas obras de Adé. Assim como Cornélio Pires e Leonardo Motta, ele deixou peças de teatro, poesia, canções e prosa. Os abnegados que ainda hoje procuram manter vivo o dialeto macaísta, caso do macaense Henrique Senna Fernandes possuem uma enorme dívida de gratidão para com ele. Sem ele, esse português quebrado de Macau seria mais uma simples e apagada curiosidade, sem textos, documentos, enfim, nada para se conhecê-lo bem.

Leiam Adé. Ele é necessário não por ser Fernando Pessoa ou Machado de Assis, mas para mostrar quantos mundos inexplorados, intocados e distintos a língua portuguesa apresenta. Com ele se aprende o português do oriente. Com ele se aprende a ser chinês em uma casa portuguesa, ou então, um mandarim de Coimbra. E ainda assim, com tudo isso dito, ele é um escritor legitimamente chinês

17 de jun. de 2010