24 de mai. de 2008

Entrevista do Amálio para o jornal O Povo

Vida & Arte ENTREVISTA

Mestiçagem latino-americana

O Brasil e a América Latina são resultado de uma formação cultural mestiça. É essa a principal questão para o professor do Departamento de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, Amálio Pinheiro

10/05/2008 16:57


Amálio Pinheiro, professor da PUC, em São Paulo: "somos um vulção primitivo" (Divulgação) Em 1924, uma caravana de artistas modernistas visitou as cidades históricas mineiras sob o pretexto de fazer o poeta franco-suíço Blaise Cendrars, afeito aos primitivismos europeus da época, conhecer o Brasil. Aproveitaram para conhecer eles próprios o País do qual falavam. Entre as descobertas da viagem que marcaria artistas como Tarsila do Amaral, Mário de Andrade e Oswald de Andrade, estavam as escuturas de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.

A Viagem de Redescoberta do Brasil foi um dos eventos que contribuiu para a guinada do movimento que deixava de ter como foco principal a polêmica estética com parnasianos e simbolistas, por exemplo, e começava a concentrar atenção nas expressões da cultura popular nacional.

O encontro entre os modernistas e as esculturas de Aleijadinho é um evento sintomático do Brasil que os modernistas concebiam para Amálio Pinheiro, professor doutor do Departamento de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autor de Aquém da identidade e da oposição - formas na cultura mestiça. Para ele, a estética barroca está no cerne de formação cultural da América Latina e é expressão da nossa condição antropófoga. (Pedro Rocha)


O POVO - Normalmente, apontam o Movimento Modernista como o primeiro a encampar uma reflexão cultural do Brasil a partir de uma idéia de mestiçagem e numa perspectiva crítica, sem os traços idealizadores do Romantismo, por exemplo. Você concorda com essa análise?
Amálio Pinheiro - Evidentemente que o Movimento Modernista foi o primeiro movimento em conjunto que pensou essas questões, porque de modo avulso isso já vinha sendo pensado por outras pessoas, não somente no Brasil, como na América Latina, como José Martí, em Cuba, e os autores das vanguardas da América Latina, como Nicolás Guillén. Essas figuras começaram a pensar a América Latina a partir de sua base cultural que até então era desprezada. Reapareceu a importância do índio e do negro, não apenas como um revanchismo com relação ao que eles haviam sofrido - esse é um grande equívoco, o de pensar o negro e o índio como identidades sofridas. O que o Modernismo e as vanguardas fizeram foi ver no negro e no índio uma grande contribuição na cultura mestiça e um modo de articulação das diferentes culturas que vieram pra cá, dessa maneira superaria aquele romantismo extrínseco de exaltação folclórica. Eles viram a formação de um novo tecido, já que se trata de um texto, vindas de várias partes do mundo e que compõem a diferença da América Latina e do Brasil. Não é à toa que o Modernismo do Brasil corresponde a várias outras situações semelhantes ocorridas na Argentina, no Peru, no Chile, foi uma tomada de consciência geral da composição cultural da América Latina.

OP - Você trata a cultura com a idéia de texto. Nesse conceito, a linguagem ganha um papel fundamental, é isso?
Amálio - Toda essa contribuição mestiça só se resolve em termos de linguagem, ela não se dá em termos mentais. A única maneira de isso ser colocado à prova é através de procedimentos de construção que se dão nas várias linguagens que compõem a cultura, inclusive, porque a cultura só existe através de textos, de linguagem, não somente a literatura, que é uma mais evidente porque trabalha com a comunicação verbal, mas também vestuário, dança, culinária, artesanato, tudo isso se dá através de composições de linguagens múltiplas em que, na verdade, o brasileiro não é senão a assimilação antropofágica de tudo que veio para cá. Nesse sentido, é que essa ação construtiva indígena é extremamente importante, porque ela nos forneceu uma capacidade de incorporação do outro, criando um novo tecido.

OP - A busca de uma "identidade nacional" guiou a grande maioria dos intelectuais do modernismo. Ao mesmo tempo, em alguns casos, como os de Mário e Oswald, particularmente em Macunaíma e no Manifesto Antropófago, eles propõem uma incorporação de diversos elementos culturais, entre uma cultura popular e uma cultura erudita, numa dinâmica cultural. Qual a análise que você faz da idéia de identidade proposta por esses autores?
Amálio - A questão é a seguinte: a palavra identidade não serve mais para o que nós somos, porque não somos um ser em estado puro, nós não cabemos dentro da ontologia ocidental, já que somos um território móvel, que acumula elementos vindos de diversas partes. Dessa maneira, temos que reinventar os conceitos para designar o que seja essa tessitura que compõe o que viria a ser o Brasil. A palavra "identidade" é uma palavra que é usada, mas não serve mais, tanto que autores importantes começam a reformular esse conceito, falando em "processos identitários", como (Jesús Martín-)Barbero, e Boaventura de Sousa Santos, que fala em "inter-identidade". Mas, na verdade, não serve mais, porque é um conceito que remete a igualdade e o que há na América Latina são processos em que um e outro se mesclaram. É um processo móvel em estado de composição contínua em que aparece o inacabamento e o movimento. Tudo aquilo que se chama de contemporâneo, advindo das novas tecnologias, nós já tínhamos na cultura desde a nossa formação.

OP - No Manifesto Antropófago, Oswald vai traçando o que seria uma tendência brasileira ao outro. Essa tendência é intrínseca da nossa formação cultural?
Amálio - A cultura brasileira se constitui não por uma tendência centrípeta ao mesmo, à afirmação de origem e de raízes específicas. A cultura brasileira se afirma pela tendência a querer o outro, daí, no Manifesto, o Oswald ter dito: "só me interessa o que não é meu". Ele disse que o movimento da cultura é esse, porque todos os objetos da cultura são mestiços, ainda que haja necessidade aqui e aculá de um "movimento índio", um "movimento negro", para afirmar suas pretensas identidades numa luta. Isso tem que ser uma coisa passageira, porque o movimento é de uma incorporação do outro. Isso tá na base, não é algo que possamos nos afastar, porque isso é derivado do que (José) Lezama Lima chamava de "arribada de confluência". Quase todo o ocidente se constituiu pela oposição centro/periferia. A América Latina e o Brasil se constitui por um afluxo plural de processos civilizatórios que tiveram que resolver esta pluralidade através de tecidos em movimento, criando novas configurações lógicas, por isso na América Latina nós temos que encontrar o nosso modo de pensar, que nasce da inclusão do alheio, o que nos faz sempre nacionais e internacionais ao mesmo tempo. Não há coisa mais ridícula na América Latina do que querer ser internacional, porque nós somos internacionais de partida.

OP - No contexto das reflexões do Movimento Modernista, existia um certo entusiasmo com a industrialização do país, de São Paulo mais especificamente, apesar de não faltar também uma compreensão crítica. Hoje, 80 anos depois, o que das reflexões daquele período você ainda considera fundamental para se pensar o país?
Amálio - São fundamentais pra pensar o Brasil e não é à toa que um ou outro autor continua vendo isso. São fundamentais porque o Modernismo foi um lugar de tentativa de pensar América Latina e o Brasil a partir da noção de que nós tínhamos aqui uma configuração lógica que não cabia nos moldes do ocidente europeu. O Modernismo brasileiro, assim como as vanguardas da América Latina, de Cuba, do México, que estavam fazendo isso ao mesmo tempo, elas foram uma tentativa de entender a América Latina aquém e além do desenvolvimento do capitalismo internacional. Ou seja, de que uma sociedade para crescer tem que se desenvolver economicamente através do processo retilíneo, ao contrário, o Modernismo estava pensando numa relação entre os avanços tecnológicos do presente, mas avanços tecnológicos refeitos, reinterpretados, reciclados pelas características plurais, mestiças, da própria cultura. Qualquer nova tecnologia não deve valer instrumentalmente por ela mesma, ela só serve depois de ter passado pelo crivo da própria rede cultural. E o Manifesto Antropofágico contém justamente elementos, assim como o manifesto do José Martí, Nuestra América. É uma outra tessitura, ela precisa de uma outra interpretação, nós não podemos viver a partir das oposições alto e baixo, dentro e fora, branco e preto, isto já está cansado.

OP - Então, ainda é atual ser moderno?
Amálio - É claro que teria que haver reinterpretações, o Modernismo foi um movimento complexo, mas a base do ideário modernista tinha que ser retomada. Evidentemente que o chamado Modernismo brasileiro não podia medir as conseqüências do crescimento, agora nós já temos condições de saber, ainda que os poderes constituídos não dêem atenção pra isso, que o progresso científico e o avanço tecnológico está chegando a um impasse, na medida que a distribuição geral de bens que o progresso científico pretendia gerou, na verdade, muito mais infelicidade e problemas do que divisão equânime de bens, pra gente dizer de alguma maneira. Mas a gente tem que perceber que o Modernismo nunca pretendeu ser moderno, isso é um nome atribuído ao movimento, não é exatamente o que o movimento é. O Oswald de Andrade pensava sempre numa combinação de elementos tecnológicos e elementos primitivos, ele nunca pensava na realidade, numa evolução retilínea na direção do futuro, noção que está na base do progresso científico. Ele nunca adotou de maneira completa essa noção. Evidentemente que havia no modernismo da época um fundamento de utopia e emancipação, essa utopia e emancipação é uma discussão muito ferrenha. Eu não sabia dizer pra você agora que não devamos ter sentimento utópico e emancipatório. Muitos autores falam que perder essa noção é ficar refém do capitalismo. Então uma outra coisa que deve ser dita a respeito é o seguinte: o nome "Modernismo" para o movimento é um nome completamente falho, porque, na verdade, a América Latina nunca pode ser moderna conforme a noção de moderno cunhada pela ciência moderna. Na verdade, nós sempre fomos um vulcão primitivo com uma pequena casca de modernidade externa que veio pra cá através da internacionalização trazida pelos meios de comunicação. O que há de moderno em nós é uma capa muito fina, marqueteira, a qual adere principalmente a classe média. Não se trata de ser antigo ser moderno, se trata de que nós nunca fomos modernos e isso não é ruim.

OP - Sem entrar em uma discussão mais profunda do conceito de modernidade, ela estaria próxima de uma idéia de civilização e progresso tecnológico?
Amálio - Tem que ver principalmente com aquilo que a ciência moderna estabeleceu desde (Francis) Bacon e (René) Descartes, certos princípios de desenvolvimento científico e que chegara a sua forma mais acabada no Iluminismo. É uma idéia de desenvolvimento que o Iluminismo levou às últimas conseqüências e que foi consolidada nas formas urbanas sócio-políticas das grandes cidades centro-européias. É a classe média que adere de maneira subserviente e passiva às seduções do consumo elaboradas pelo capitalismo internacional, inclua-se aí modos de convivência, em geral, modos de vestir, modos de convivência com a mídia etc. Mas não é isso que o Brasil é. A América Latina é aquele turbilhão mestiço. A verdade é o seguinte: a América Latina tem por um lado esse turbilhão barroco mestiço, de outro ela sofreu três invasões muito problemáticas e que são invasões que até agora atuam na cabeça do brasileiro e do latino-americano. Sofreu uma invasão clássica, aquela formulada pelas ciências clássicas; sofreu uma invasão clerical-eclesiástica, que tem que ver com formas de ensino e conhecimento elaboradas na Idade Média pelo mundo católico; e desde o começo de 1900 sofreu essa nova invasão tecno-capitalista ou publicitário-capitalista. Essas três invasões combinadas - algumas pessoas estão mais próximas de uma ou de outra - tornam, às vezes, difícil da gente conseguir ver o que é o Brasil e a América Latina ou aproveitando-se e devorando isso também. Às vezes, elas são transformadas, assimiladas. Outras, são postiças. O Gilberto Freyre dizia que havia elemento rotarianos na cultura brasileira. Esse civilismo bem comportado, ou seja, a adesão às formas de atualidade neo-liberal as quais a classe média adere com facilidade. É algo parecido ao analfabeto secundário, ele aprendeu a ler e escrever, mas é um analfabeto do sistema.

CONTEÚDO EXTRA
Leia a entrevista na íntegra no www.opovo.com.br/conteudoextra

Um comentário:

talita disse...

eu naum achei o que eu estou procurando o que eu quero e a entrevista do autor barroco (iluminismo)
obrigada