23 de ago. de 2009

Comunidades Falsificadas - JESÚS MARTÍN-BARBERO

Caros,

Hoje a Folha de S.Paulo traz uma entrevista com Jesús Martín-Barbero --para quem a área da comunicação deve ser pensada como "nebulosa", uma região sem fronteiras nem centro.

Link (só para assinantes): http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2308200914.htm

Aproveito para contrabandeá-la aqui. :)

bjs
Natália

+Sociedade

Comunidades falsificadas
Filósofo espanhol diz que a utopia de democracia direta e igualdade total na internet é mentirosa e ameaça minar as práticas de representação e participação políticas reais

RENATO ESSENFELDER
DA REDAÇÃO

Com a emergência de gigantescas redes sociais virtuais, como o Facebook, a internet configura a sua utopia máxima: todos somos iguais. E, se somos todos iguais, não precisamos mais de eleições, pois não precisamos ser representados. Todos nos representamos no espaço democrático da internet.
O raciocínio é tentador, mas, para o filósofo espanhol Jesús Martín-Barbero, é mentiroso -e temerário. "Nunca fomos nem seremos iguais", ele diz, e na vida cotidiana continuaremos dependendo de mediações para dar conta da complexidade do mundo, seja a mediação de partidos políticos ou a de associações de cidadãos.
Martín-Barbero vê a internet como um dos fatores de desestabilização do mundo hoje, que não pode ser pensado por disciplinas estanques. Mundo, aliás, tomado pela incerteza e pelo medo, que nos faz sonhar com a relação não mediada das comunidades pré-modernas. O filósofo conversou com a Folha durante visita a São Paulo, na semana passada.




FOLHA - Desde 1987, quando o sr. lançou sua obra de maior repercussão ["Dos Meios às Mediações", ed. UFRJ], até hoje, o que mudou na comunicação e nas ciências sociais?
JESÚS MARTÍN-BARBERO - Estamos em um momento de pensar o conceito de conhecimento como certeza e incerteza. A incerteza intelectual dos modernos se vê hoje atravessada por outra sensação: o medo. A sociedade vive uma espécie de volta ao medo dos pré-modernos, que era o medo da natureza, da insegurança, de uma tormenta, um terremoto. Agora vivemos em uma espécie de mundo que nos atemoriza e desconcerta.
O medo vem, por exemplo, da ecologia: o que vai acontecer com o planeta, o nível do mar vai subir? A natureza voltou a ser um problema hoje, como aos pré-modernos. Depois vem o tema da violência urbana, a insegurança urbana. Por toda cidade que passo, de 20 mil a 20 milhões de habitantes, há esse medo.
Como terceira insegurança, que nos afeta cada vez mais, aparece a vida laboral. Do mundo do trabalho, que foi a grande instituição moderna que deu segurança às pessoas, vamos para um mundo em que o sistema necessita cada vez menos de mão de obra. O mundo do trabalho se desconfigurou como mundo de produção do sentido da vida.

FOLHA - Nesse mundo de incertezas, como se comporta a noção de comunidade? Como ela aparece em redes virtuais como o Facebook?
MARTÍN-BARBERO - Acho que ainda não temos palavras para nomear esse fenômeno. Falamos em rede social, mas o que significa social aí? Apenas uma rede de muita gente. Não necessariamente em sociedade. Há diferenças entre o que foi a comunidade pré-moderna e o que foi o conceito de sociedade moderna.
A comunidade era orgânica, havia muitas ligações entre os seus membros, religiosas, laborais. Renato Ortiz [sociólogo e professor na Universidade Estadual de Campinas] faz uma crítica muito bem feita a um livro famoso de [Benedict] Anderson, que diz que a nação é como uma comunidade imaginada ["Comunidades Imaginadas", ed. Companhia das Letras], principalmente por jornais e a literatura nacional.
É verdade, são fundamentais para a criação da ideia de nação. Mas Renato Ortiz diz que há muito de verdade e muito de mentira nisso. O que acontece é que, quando a sociedade moderna se viu realmente configurada pelo Estado, pela burocracia do Estado, começou a sonhar novamente com a comunidade. Era uma comunidade imaginada no sentido de querer ter algo de comunidade, e não só de sociedade anônima.
Falar de comunidade para falar da nação moderna é complicado, porque se romperam todos os laços da comunidade pré-moderna. Eu diria que há aí um ponto importante, considerando que no conceito de comunidade há sempre a tentação de devolver-nos a uma certa relação não mediada, presencial. Essa é um pouco a utopia da internet.

FOLHA - Qual utopia?
MARTÍN-BARBERO - A utopia da internet é que já não necessitamos ser representados, a democracia é de todos, somos todos iguais. Mentira. Nunca fomos nem somos nem seremos iguais. E portanto a democracia de todos é mentira. Seguimos necessitando de mediações de representação das diferentes dimensões da vida. Precisamos de partidos políticos ou de uma associação de pais em um colégio, por exemplo.

FOLHA - As comunidades virtuais da atualidade têm pouco das comunidades originais, então?
MARTÍN-BARBERO - Quando começamos a falar de comunidades de leitores, de espectadores de novela, estamos falando de algo que é certo. Uma comunidade formada por gente que gosta do mesmo em um mesmo momento. Se a energia elétrica acaba, toda essa gente cai.
É uma comunidade invisível, mas é real, tão real que é sondável, podemos pesquisá-la e ver como é heterogênea. Comunidade não é homogeneidade. Nesse sentido é muito difícil proibir o uso da expressão "comunidade" para o Facebook. Mas o que me ocorre ao usarmos o termo "comunidade" para esses sites é que nunca a sociedade moderna foi tão distinta da comunidade originária.
O sentido do que entendemos por sociedade mudou. Veja os vizinhos, que eram uma forma de sobrevivência da velha comunidade na sociedade moderna. Hoje, nos apartamentos, ninguém sabe nada do outro. Outra chave: o parentesco. A família extensa sumiu. Hoje, uma família é um casal. O que temos chamado de sociedade está mudando. Estamos numa situação em que o velho morreu e o novo não tem figura ainda, que é a ideia de crise de [Antonio] Gramsci.

FOLHA - A proposta de sites como o Facebook não é exatamente de fazer essa reaproximação?
MARTÍN-BARBERO - Creio que há pessoas no Facebook que, pela primeira vez em suas vidas, se sentem em sociedade. É uma questão importante, mas não podemos esquecer da maneira como nos relacionamos com o Facebook.
Um inglês que passa boa parte de sua vida só, em um pub, com sua grande cerveja, desfruta muito desse modo de vida. Nós, latinos, desfrutamos mais estando juntos.
Evidentemente a relação com o Facebook é distinta. O site é real, mas a maneira como nos relacionamos, como o usamos, é muito distinta. O Facebook não nos iguala. Nos põe em contato, mas nada mais.

FOLHA - De que maneira essas questões devem transformar os meios de comunicação?
MARTÍN-BARBERO - Não sei para onde vamos, mas em muito poucos anos a televisão não terá nada a ver com o que temos hoje. A televisão por programação horária é herdeira do rádio, que foi o primeiro meio que começou a nos organizar a vida cotidiana. Na Idade Média, o campanário era que dizia qual era a hora de levantar, de comer, de trabalhar, de dormir. A rádio foi isso.
A rádio nos foi pautando a vida cotidiana. O noticiário, a radionovela, os espaços de publicidade... Essa relação que os meios tiveram com a vida cotidiana, organizada em função do tempo, a manhã, a tarde, a noite, o fim de semana, as férias, isso vai acabar. Teremos uma oferta de conteúdos. A internet vai reconfigurar a TV imitadora da rádio, a rádio imitadora da imprensa escrita... Creio que vamos para uma mudança muito profunda, porque o que entra em crise é o papel de organização da temporalidade.

FOLHA - A ascensão da internet e da oferta de informação por conteúdos suscita outra questão, ligada à formação do cidadão. Não corremos o risco de que um fã de séries de TV, por exemplo, só busque notícias sobre o tema, alienando-se do que acontece em seu país?
MARTÍN-BARBERO - Antigamente, todos líamos, escutávamos e víamos o mesmo. Isso para mim era muito importante. De certa forma, obrigava que os ricos se informassem do que gostavam os pobres -sempre defendi isso como um aspecto de formação de nação.
Quando lançaram os primeiros aparelhos de gravação de vídeo, disseram-me que isso era uma libertação: as pessoas poderiam selecionar conteúdos.
Mas esse debate já não é possível hoje. Passamos para um entorno comunicativo, as mudanças não são pontuais como antes. A questão não é se eu abro ou não abro o correio. Não quero ser catastrofista, mas o tanto que a internet nos permite ver é proporcional ao tanto que sou visto. Em quanto mais páginas entro, mais gente me vê. É outra relação.
Temos acesso a tantas coisas e tantas línguas que já não sabemos o que queremos. Hoje há tanta informação que é muito difícil saber o que é importante. Mas o problema para mim não é o que vão fazer os meios, mas o que fará o sistema educacional para formar pessoas com capacidade de serem interlocutoras desse entorno; não de um jornal, uma rádio, uma TV, mas desse entorno de informação em que tudo está mesclado. Há muitas coisas a repensar radicalmente.




QUEM É JESÚS MARTÍN-BARBERO

DA REDAÇÃO

Nascido na Espanha, mas radicado na Colômbia, Jesús Martín-Barbero é doutor em Filosofia e Letras pela Universidade de Louvain, na Bélgica, e coordenador de pesquisa da Faculdade de Comunicação e Linguagem da Pontifícia Universidade Javeriana de Bogotá.
Autor popular entre estudiosos da comunicação no Brasil, estuda o fenômeno sob enfoque cultural. Propôs em sua visita a São Paulo na última segunda que a área seja pensada como "nebulosa" -uma região sem fronteiras nem centro.
Ele esteve na cidade para aula magna de lançamento do Fórum Permanente de Programas de Pós-Graduação em Comunicação do Estado de São Paulo.

21 de ago. de 2009

As Viagens Musicais de Paulo Vanzolini



Vanzolini em retrato feito no mês de abril. Um especialista em répteis e anfíbios que escreveu sambas memoráveis


Revista BRAVO! | Julho/2009
http://bravonline.abril.uol.com.br/conteudo/musica/viagens-musicais-paulo-vanzolini-480900.shtml

As Viagens Musicais de Paulo Vanzolini
Ou: de como as excursões de um biólogo influenciaram a linguagem e a inspiração de um compositor
Por Diogo Schelp


Criador de clássicos da música brasileira como Ronda, o compositor Paulo Vanzolini sempre teve o hábito de escrever diários de viagem. Anotados a lápis ou caneta-tinteiro durante suas expedições como biólogo, à luz de lampião e enquanto abanava os mosquitos, esses manuscritos estão encadernados em uma dezena de grossos volumes de capa vermelha. Numa comparação livre, levando-se em consideração o abismo de épocas, pode-se dizer que Vanzolini é o último dos naturalistas-viajantes. O músico e cientista, hoje com 85 anos, seria assim o herdeiro da tradição de Spix e Martius, Darwin, Saint-Hilaire, Langsdorff e outros que percorreram o Brasil no século 19, anotando o que viam, colhendo e empalhando espécies animais e pintando a paisagem. Deles, mantém o espírito desbravador e generalista, em extinção em tempos de ciência cada vez mais especializada.

A maioria das páginas de seus diários, como não poderia deixar de ser, contém inventários detalhados dos bichos encontrados nas incursões mato adentro.Mas há também alguns trechos que permitem, de maneira saborosa, entrever a intersecção entre o Paulo cientista e o Paulo artista. Vanzolini é tema de um documentário que está em cartaz nos cinemas, Um Homem de Moral, dirigido por Ricardo Dias. O filme possibilita uma viagem pelo universo musical de Vanzolini, uma vez que ele se estrutura a partir da atividade do compositor. Já a viagem que os diários propõem é mais errática, complexa e surpreendente. Poderia dar origem a outro documentário.

Muitos dos sambas de Vanzolini nasceram da observação astuta e bem-humorada do cotidiano de São Paulo. Praça Clóvis, por exemplo, conta a história de um sujeito que teve a carteira batida na fila do lotação, mas fica feliz porque o furto o livrou da foto de uma mulher de quem havia tempos tentava esquecer. "Tinha vinte e cinco cruzeiros/ e o seu retrato/ Vinte e cinco eu francamente achei barato/ pra me livrarem do meu atraso de vida". Nos relatos de viagem, o mesmo interesse pelos detalhes aparentemente banais do cotidiano está presente. Em uma expedição ao interior do Maranhão, em janeiro de 1955, o cientista observa com curiosidade a estratégia usada pelos caboclos para lhe vender animais. Escreveu o zoólogo: "O pessoal daqui faz tanto negócio por procurador (vindo o procurado junto como espectador) que nem sei mais quem está vendendo. Há um moleque cujo pai vai caçar calangos mas tem vergonha de vender — manda o moleque, que conta tudo ('me paga logo que meu pai quer comprar uma melancia')". Na mesma viagem, o cientista anotou a seguinte cena presenciada no banheiro de um hotel em São Luís: "Um semianalfabeto lendo e explicando para um analfabeto completo uma crônica mundana sobre o festival de Punta del Leste — namoros de Ibrahim Sued, que não fala inglês, com uma jovem qualquer fabulosa que não fala português". Sued era colonista social de O Globo.

Vanzolini não faz questão de esconder que nada entende de música. Ele não sabe diferenciar tom maior de tom menor e, segundo Martinho da Vila, não tem ritmo algum. As suas canções são feitas na pura intuição, com fragmentos do que ele próprio chama de sua memória melódica submersa. Pela frequência e interesse com que anotou, em seus cadernos, versos sertanejos e canções de domínio popular, é natural que estes também tenham influenciado sua memória musical e, como consequência, suas composições. No Maranhão, ele registrou os seguintes versos populares: "Quando eu vim lá de casa/ que passei no caxelô/ fiz um par de alpercata/ dos queixos do teu avô/ só não fiz mais bem feito/ porque o diabo do véio acordou". Semelhante narrativa insolente e desafiadora, típica dos improvisos nordestinos, foi criada por Vanzolini em sua Capoeira do Arnaldo: "Quando eu vim da minha terra/ Vim fazendo tropelia/ No lugar onde eu passava/ estrada ficava vazia/ quem vinha vindo ficava/ quem ia indo não ia". Apesar de ser um compositor urbano, a temática regionalista e os bichos povoam canções como Toada de Luís, O Rato Roeu a Roupa do Rei de Roma e Cuitelinho. Esta última de domínio público e enriquecida pelo zoólogo com duas novas estrofes.

Entre os versos de autores anônimos anotados por ele, e que de outra maneira teriam se perdido para sempre, está uma moda de viola que ele ouviu em uma expedição de 1964 para capturar cobras na ilha da Vitória, no litoral norte paulista. A Moda do Concar conta a história de um navio espanhol que encalhou nas proximidades da ilha e cuja carga, principalmente óleo de oliva, foi saqueada pelos caiçaras. Hoje, alguns moradores mais velhos do Bonete, praia de pescadores em Ilhabela, ainda se lembram com dificuldade de algumas estrofes da canção. Eles reclamam que não podem mais tocá-la: os pastores das igrejas evangélicas que nos últimos anos se estabeleceram na região proí­bem as músicas tradicionais, consideradas pagãs.

Em Um Homem de Moral, Ricardo Dias recupera uma cena de um de seus filmes anteriores em que o cientista caminha na mata, com uma espingarda na mão, e discorre sobre o prazer que tem de estar naquele ambiente: "A mata é uma dessas coisas em que o todo é mais do que a soma das partes. Não é só essa luz, essas plantas, esses bichos, essas vozes, mas é esse todo que penetra a gente". A frase do herpetólogo (especialista em répteis e anfíbios) também serve para descrever as letras de seus sambas. Nelas, o todo é muito mais do que simplesmente a soma das palavras. Há sempre em cada estrofe um elemento oculto, algo que não é dito mas está lá, ajudando a formar uma cena, uma imagem, um sentimento. Em Teima Quem Quer, por exemplo, Vanzolini apresenta uma discussão entre um homem e uma mulher. Mas o contexto da briga, o motivo que levou o casal a se desentender e o tipo de relacionamento existente entre eles ficam apenas subentendidos. A elipse também está presente em Cravo Branco, que conta a história de um crime passional. A segunda estrofe do samba descreve o momento em que o sujeito vê o revólver apontado para ele e sua falta de reação. No verso seguinte, a vítima já está desabando no chão. A narrativa omite o tiro.

Em seus diários de viagem, Vanzolini demonstra a mesma habilidade para contar as histórias de maneira concisa, econômica, dando ainda mais dramaticidade aos fatos. Em uma viagem ao Xingu, em 1965, o cientista estabeleceu a base de sua expedição em uma aldeia dos camaiurás. À noite, em longas conversas à beira da fogueira, os índios contavam, com naturalidade e em detalhes, como haviam matado homens de sua própria tribo, em geral por suspeita de feitiçaria. O zoólogo resumiu assim um assassinato cometido por um índio chamado Wacucuman, a paulada e tiros de calibre .22: "Encontrou o outro na praia. 'Porque está rindo, W.?' 'Porque vai matar você.' Pau, 22 no coco, corpo n'água". Em suas anotações, Vanzolini agradecia a sorte de nenhum feitiço ruim ter sido atribuído a ele, que, médico, tinha fama de pajé na aldeia.

Entrevistei Paulo Vanzolini pela primeira vez quando eu ainda estava na faculdade, para um trabalho de conclusão de curso. A sala onde o biólogo trabalhava, no Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, era escura e povoada por répteis conservados em vidros com formol e por pesados livros que envergavam as estantes. Ele me ofereceu café, e eu recusei. O herpetólogo, então, ofereceu cachaça. De cima de um armário baixo, apanhou uma garrafa de álcool de cozinha 92,8º e serviu o conteúdo em duas canecas de metal. "É para os funcionários do museu não acharem que eu bebo em serviço", explicou, sobre o hábito de guardar pinga no recipiente de plástico. O expediente já havia terminado e o zoólogo estava prestes a dar lugar ao artista. A cachaça escondida no escritório é como o Vanzolini sambista ou os versos ocultos de suas músicas — nem sempre é visível, mas está lá, parte inseparável do todo.



Diogo Schelp é jornalista de Veja.

O FILME
Um Homem de Moral, de Ricardo Dias. Em cartaz nos cinemas